quarta-feira, janeiro 25, 2006

Homem/Menino

Fala-se muito hoje sobre “integração”.
Desde que me lembro de o ouvir que me sinto “incomodada” com este termo.
Se há “integração” é porque há exclusão, diferença e eu não entendo isso.
Afinal as pessoas que mais nos deixaram marcas ao longo da nossa vida sempre foram as que consideramos diferentes.
Fico mesmo confundida. Entendemos o que é normalidade por oposição à anormalidade, à diferença.
Quando iniciei a minha carreira profissional era uma miúda. Na altura acho que nem tinha muita consciência da responsabilidade enorme que tinha nas mãos.
Comecei a trabalhar com um grupo de jovens adolescentes “diferentes”.
Dentro da escola eles eram todos “normais”. Todos tinham um handicap, logo todos “normais”.
Também naquele grupo de jovens “normais” existiu um que me marcou pela “diferença”.
O Paulo, era (é) um homem a que chamo “homem menino”. Era um menino que vestia o corpo de homem. E que homem! Todo ele era (é) enorme.
O Paulo é surdo (não severo) e tem um défice cognitivo ligeiro.
Na realidade o seu maior obstáculo, o que não o deixa “caminhar”, é a sua surdez, não o seu défice cognitivo.
Nunca aprendeu linguagem aumentativa nem língua gestual. A sua comunicação é muito pobre. Aprendeu a comunicar gesticulando ao mesmo tempo que lhe juntava uma tentativa de articulação verbal. Ou seja, só mesmo quem está “ à sua volta” o entende.
É também muito desconfiado… Não ouve mas imagina que ouve e como não percebe, considera que o estarão sempre a criticar. Logo zanga-se e muito.
Tinha grandes ataques de fúria, por variadíssimas razões.
Durante vários anos tentei acalmar as suas fúrias. Tentei introduzir-lhe a língua gestual. Se a aprendesse poderia “fazer-se ouvir e ouvir melhor”.
A prendeu algumas coisas e alargou o seu campo de acção. Tornou-se mais autónomo, mais capaz.
Ao longo dos anos fui “crescendo” com o Paulo. Consegui que me transmitisse o que sentia e porque se enfurecia tantas vezes. Um dia consciencializei que o Paulo tinha grandes angústias. Queria casar, apaixonar-se, ter filhos, trabalhar. Mas ao mesmo tempo queria também continuar a jogar consola, game-boy, brincar às escondidas, à bola. O Paulo estava a “crescer”, a amadurecer. Afinal o Paulo também “crescia”…
Temos diferença de 3 anos de idade. As angústias do Paulo tinha-as tido por volta dos 12/13 anos e ele tinha 20, mas o que é um facto é que ele “crescia”, mais lentamente, mas “crescia”.
Ontem vi o Paulo. Não o via à 8 anos. Mais magro, cabelos brancos, ligeira calvice. Deu-me um abraço do tamanho do mundo, soltou uma gargalhada que ensurdecia. De repente tive que por à prova o que ainda sei de língua gestual (tenho que me reciclar!) porque o Paulo começou-me num atropelo de “palavras” que eu só entendia os inícios de frase.
Pelo meio dizia-me para eu ir lá a casa, a nova, que agora já tem outra, com 2 assoalhadas só para ele. Um quarto e uma sala só para ver tv, vídeos, jogar computador e consola. Disse-me ainda com um enorme sorriso que tinha namorada e que qualquer dia casava.
Ontem tive a certeza que o Paulo, o “homem menino”, tinha crescido. Marcou-me pela sua DIFERENÇA.